sábado, 24 de agosto de 2019

Autobiografia de Fernando Namora


A infância,então. A adolescência melancólica, a juventude dramatizada. Mas os anos longínquos quase se me esvaziaram. Talvez tivesse precisado de os esquecer. Às vezes persiste só um odor: resinas, urze, o chamuscar do porco na bárbara matança ritual, os refogados impregnando quanta vizinhança havia, à hora da ceia - a ceia do par de velhos cujo conduto para a broa era uma cebola apurada na frigideira. Tudo cheiros medulares e sugestivos. Às vezes um som: o vento nas ramarias, os sinos perdidos na charneca, os estalidos na madeira do tecto, o estrondo no castanheiro do fundo do quintal naquela noite de raios e coriscos, o piar nocturno de uma ave. Tudo sons que davam mistérios às coisas.
Com o tempo e o desaparecimento das pessoas, acentuou-se o meu pendor para a solitude. Errava pelos montes, observando os moleiros e os pastores, decorava livros inteiros de poesia, recitando-os para mim próprio no quarto que dava para a rua da vinha.


                           BURGO

          Meu velho burgo dormindo
          meu berço de heras
          poeira húmida
          de secos orvalhos
          minha lembrança 
          de presságios não cumpridos
          meu regaço de penas
          minha brisa alada
          burgo meu cais
          donde não parto nem volto
          aceno de asa
          sem mastros de largada
          minha água 
          de sede crestada
          burgo meu destino
          de fugir e restar
          sem haver partido

          Fernando Namora
          https://www.youtube.com/watch?v=GoahOy1Olfo

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