domingo, 19 de junho de 2022

De volta à Serra da Estrela






Estou a escrever um romance, comecei-o no dia 15 de junho, e escrevo às cegas, caminhando numa espécie de nevoeiro: há-de chegar o momento em que encontrarei de súbito uma clareira iluminada e então compreenderei tudo. Voltei anteontem da Serra da Estrela, ou seja de a poucos quilómetros da Serra da Estrela onde fui encher os olhos com a minha infância que segue naquelas árvores, naquelas pedras, no pinhal que já não existe e no entanto para mim permanece. Casas escuras por ali acima. E um bloco de saudade no lugar do estômago. Às vezes percebo mal no que me tornei (...). 
Quando acabar esta crónica volto ao romance. É-me impossível falar dele porque se faz sozinho, andei anos a treinar a mão para escrever sem mim. Eu em bicos de pés e a mão lá em cima, arrebanhando tudo o que apanha, pelo simples tacto, numa prateleira alta (...)
Acho que estou quase no fim, vou despedir-me. Que trabalheira sorrir, apertar mãos. Que trabalheira anoitecer, e que falta de dignidade a velhice e a doença. Óculos, Dificuldades nos ossos. Lentas misérias.
Quase no fim, disse eu. Subir para o quarto, sentar-me à mesa, fechar os olhos antes de começar. A Serra da Estrela inteira à minha frente, luzes de Seia, de Gouveia, de outras terras. Da varanda dos meus avós o alumínio dos grilos raspando, raspando. Continuarão depois de mim, continuarão para sempre, eternos como as pedras.

António Lobo Antunes



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