domingo, 19 de junho de 2022

À volta de Nelas

Termas de Alcafache







Caldas da Felgueira




BANHOS DE PRINCESAS E LÁZAROS: TERMALISMO E ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL

Não se engane o leitor: este não é um conto de princesas e de sapos que afinal são príncipes enclausurados em corpo de bicho à espera da redenção por um beijo na beira do lago; tão pouco é uma evocação das moiras encantadas que se escondem nas fontes das montanhas e dos vales, ou um episódio da noite de São João, quando o reflexo das águas devolve o futuro a quem nelas se olha. As princesas e os lázaros que aqui evocamos não pertencem às lendas e narrativas de águas e encantamentos que abundam no folclore europeu.

As nossas princesas e lázaros são de carne e osso, de nervos e pele, têm nomes humanos, vida social, existência histórica; e vão a banhos nas termas europeias. São princesas, duquesas e cortesãs aprisionadas em espartilhos que lhes trazem os nervos à flor da pele, procurando nas águas o refrigério para as suas hipocondrias e reais padecimentos; elas e eles, príncipes, duques e outras celebridades que as acompanham, buscando também no pretexto dos banhos o momento dos encontros, o terreno dos matrimónios, das alianças, das cumplicidades, dos negócios e até da criação literária. Igualmente reais são os leprosos e outros intocáveis que, descamando a pele e perdendo a integridade dos sentidos e dos órgãos, procuram nas águas a possibilidade de atenuar as incompletudes, as dores, o ardor das chagas; ou os paralíticos, apopléticos e reumáticos que, apoiados em bengalas ou transportados em macas, querem nos banhos aliviar dores e recuperar alguma da mobilidade perdida.

Entre monarcas e párias, príncipes e mendigos, clientes de todas as castas e qualidades partem para banhos, termas, caldas, vilas de águas, estações termais ou spas, como se têm chamado, em diferentes contextos da Europa e do mundo, os lugares em que a fama curativa das águas e a qualidade dos ares apelam a visitas e estadias de doentes, peregrinos, turistas, enfim, aquistas e termalistas. Ao longo dos séculos, com a pele descamada, os nervos inflamados, os membros paralisados, os efeitos da sífilis fazendo-se anunciar, as articulações toldadas, a gota latejando, ou simplesmente os sentidos postos numa estadia de intenso convívio e rituais de sociabilidade, muitos acorreram às águas – sagradas, santas, de virtudes, minerais, mineromedicinais, medicinais. Todos usam das mesmas águas, mas talvez não das mesmas tinas, ou das mesmas banheiras, ou sequer das mesmas nascentes. Neste partilhar e separar das águas se concentra, como mostrarei, a essência do termalismo europeu: água para todos, para tudo tratar, mas a todos de modos diferentes, cada um no seu lugar.

Cristina Bastos

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