quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Memórias de viagens de comboio


As carruagens de primeira classe: os estofos cor de mel, as redes grossas onde às vezes se acomodavam os meninos já grandotes, para não pagar bilhete, tinham um tom elegante e ligeiramente dramático. Como se tivessem ainda o perfume de mulheres bonitas e galãs de chapéu de palhinha. Ninguém levava farnel nas carruagens de primeira classe. Às vezes, alguém comprava água fresca na Ermida ou uma regueifa em Valongo. Mas era tudo muito discreto, muito digno, não se tirava o chapéu nem as luvas nem se abanava o rosto com um papel pregueado. Havia quem lesse um livro durante todo o tempo, as Décadas de João de Barros, não se pode imaginar maior presunção. Levantavam os olhos de vez em quando para gozar a impressão que faziam.
Nas carruagens de segunda classe era tudo mais falado. Faziam-se amizades, trocavam-se merendas, conselhos, as mães diziam coisas dos filhos e como os criavam. Lia-se o jornal, O Comércio do Porto, ia-se à janela, que se abria com fragor para ver como era desprender a correia que a segurava. As mulheres protestavam, muito remexidas nos assentos, e os filhos olhavam como se fossem espectadores duma briga prestes a acontecer. Uma vareja entrava pela janela anunciando o Verão pastoso dum calor que encrespava as folhas. A alma sensata viajava em segunda classe, era opiniosa e moderada; escandalizava-se facilmente, tinha pena das mulheres perdidas e culpava os ricos dos luxos e dos maus exemplos. Calavam-se de repente quando passava uma desconhecida de saltos altos que procurava o lugar com o bilhete na mão.
Enquanto na terceira  classe era a festa, diziam-se larachas, derramava-se vinho, ouvia-se o piar dos frangos nas cestas de vime vermelho. Eram os presentes para os padrinhos, para os protectores que livravam da tropa os filhos. Nos açafates forrados com uma toalha de linho, estava o requeijão e as primeiras cerejas em rocas de pau verde. As criadinhas que saíam de casa para servir na cidade sorriam debilmente, apertadas num colete artesanal, ainda de ilhós, muito à antiga. Tinham olhos de quem chorou à despedida, mas o comboio dissipava-lhes a tristeza como se fosse um berço em que as promessas escurecem as recordações.

Agustina Bessa-Luís
Foto da estação dos caminhos de ferro de Aveiro

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