sábado, 28 de abril de 2012

Quadras


Se fazes tudo às avessas,
Para que prometes tanto?
Não me faças mais promessas,
bem sabes que não sou santo.

P'ra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.

Não digas que me enganaste,
por ter confiado em ti;
muito mais do que levaste,
ganhei eu no que aprendi.

Que o mundo está mal, dizemos,
e vai de mal a pior;
e, afinal, nada fazemos
p'ra que ele seja melhor.


domingo, 22 de abril de 2012

A vocação dos poetas


Como quem pega na vida
por vezes além da hora,
como quem treina o palato
com limões de estranha história,
mas que decorre do acto
de nada deixar de fora,
tal é a voz que é semente
e que é fruto e é fermento
de quem em fogo labora,
de quem em chamas se sente:

Sem pagar juros de mora
cumpre sempre o seu contrato:
o de não esquecer os sonhos
nem omitir qualquer facto.

João Rui de Sousa
http://www.youtube.com/watch?v=Nkhk3x-2Eu4

domingo, 15 de abril de 2012

Viajar no tempo


As pessoas dividem-se, grosso modo, entre aquelas cujo destino é envelhecer (a maior parte), as que serão sempre jovens e as que aos sete anos já tinham setenta e sete.
Picasso e Einstein, por exemplo, nunca passaram dos doze. Grandes criadores, aliás, costumam ser crianças. Olha-se para Júlio Pomar e é um menino - com o olhar deslumbrado de um menino. Já António Oliveira Salazar foi sempre um homem muito idoso - nem o consigo imaginar no corpo de uma criança, vejo um anão com cara de velho.
Um bom exercício para compreender em que grupo nos situamos, e sobretudo para combater a velhice, consiste precisamente em imaginar um diálogo entre quem fomos aos vinte e quem somos hoje, aos quarenta ou sessenta ou mais. Os primeiros dias do ano - um tempo de balanço e de projectos - são particularmente propícios para tais exercícios.
- Olá! Eu sou tu daqui a vinte anos, o que achas?
- Santo Deus! Não contes a ninguém que me conheceste!
Pois! São poucos os que passam a prova. Quanto a mim, há vinte e tantos anos olhei-me ao espelho, no quarto amplo de um hotel decadente, e vi-me como seria aos quarenta e poucos. Vi-me com tanta nitidez, com um tal detalhe e precisão, que cheguei aos quarenta sem assombro. Nunca mais regressei ao hotel em causa, porém, com receio de me ver aos sessenta e não gostar. Mas penso muito naquele espelho mágico.
Viajar no tempo, na verdade, viajamos todos e com uma incrível rapidez. O problema é que a estrada só tem um sentido. Viajamos em direcção ao futuro e ao inevitável desastre. O desafio consiste em fazer essa viagem sem deixar que o coração envelheça. Ter filhos pode ajudar. Um filho - seja criança ou adolescente - é uma espécie de âncora que nos agarra ao presente, impedindo-nos a deriva melancólica para o passado. Um filho leva-nos pela mão, como um pequeno cicerone, e dá-nos a ver o futuro: ali as maravilhas, acolá os monstros, e tanto os monstros quanto as maravilhas fazem parte do mesmo jogo - desafios a vencer com alegria.
Ninguém que tenha um filho adolescente - e que partilhe intensamente a sua vida com a dele - diz "no meu tempo". O tempo dele é aquela imensa onda que, com a ajuda do filho, se prepara para apanhar. Um filho é também uma segunda oportunidade para ser criança - e para algumas pessoas pode ser mesmo a primeira oportunidade.

José Eduardo Agualusa
http://www.youtube.com/watch?v=Besb25n3va0

terça-feira, 10 de abril de 2012

Caminho dos montados


No norte mais norte de Portugal, e no seu oeste mais oeste, rasga-se um caminho que de tão lamacento só de galochas se percorre no inverno, e de tão poeirento só de sandálias se calcorreia no verão. A uma pintora estrangeira, em tempos fixada nas cercanias, apareceu certa vez, erguido por detrás de um recesso de azevinho, um anjo muito lindo, e de tamanha alvura que se diria coberto da farinha mais fina que se alcançasse moer. E a uma outra mulher, mas essa local, saltou-lhe para diante, vindo dos dentros de um carvalho carcomido, um trasgo, tão real como quem estas linhas escreve. Usava barrete galego, vestia jaleco de veludo verde, e calça de briche vermelho, e enfiava os pés numas soquinhas que davam cobiça. Com tudo isso, afiançava a que o enxergara, cabia o diacho do trasgo na covinha da mão.
Não explicarei onde se situa o meu caminho, de resto por demais esconso para que nele consiga alguém penetrar. Não quero que se atrevam a cortar por lá uma rama de loureiro, ou sequer a seguir o tranquilo rasto da sombra que eu for projectando.

Mário Cláudio
http://www.youtube.com/watch?v=pAKlhMNv-9E

domingo, 1 de abril de 2012

Abril - Sinfonia da Primavera


Eu bem na sinto! Eu bem na sinto! apesar das fuligens do céu mal humorado, e da ventania que me apupa, através das frinchas das janelas. Uma pulsação vigora as alamedas, nas ascendências inexauríveis da seiva, rebentando em folhagens de contextura fina, por forma que já não é ficção o caso do homem que ouvia crescer erva nos campos, visto que eu há quinze dias oiço, no recanto do parque aonde vivo, sob uma umbela vermelha de paisagista, o burburinho da natureza que se revigora e emplumesce, numa dessas orgias de cor que faziam rir o olho azul de Rousseau, e punham emoções na palidez fatigada de Huet, o paisagista da ilha verde de Seguin.
A esta hora, por esses campos, nem vocês imaginam o que os melros dizem de alegre, e o que as borboletas vivem de contentes. Os murmúrios da água, que pelos regatos vai, como um sangue robusto, espalhando juventudes na cultura, dizem às velhas árvores histórias duma suavíssima poesia; e pelos ramos tufados de verdura húmida, tenra, tamisada de cintilas solares, entra a repovoar-se a cidade dos ninhos, grande cidade moderna com avenidas, concertos, five o'clock, toilettes de plumas, e exibições de caudas roçagantes. Ontem  me dizia na tapada um velho pintassilgo...
E por esses pomares, entre sebes de silvados e canaviais, que florações simpáticas, feitas com gotinhas de néctar e salpicos de sangue arterial!
Eu bem na sinto! Eu bem na sinto!
E os dias lúcidos vão inundar de tonalidades esses subsolos de florestas perdidas nos fundos bucólicos da província. Uma virgindade cerra as espessuras, e imacula as sombras das árvores, cuja cúpula, por cima, estrela o azul impecabilíssimo do céu. E pelas ramas que se engalfinham, se enlaçam, procuram,  frémitos de asas, num mistério de núpcias. Nenhum canto de natureza infecundo! o mesmo amor que sobe da terra,  a revigorentar os arvoredos, comunica-se aos ninhos, cinge os casais de pássaros, extravasa no ar como uma nafta de bodas bíblicas, e comunica-se, aspira-se, vai-se infiltrando em toda a parte.
Porque é necessário renovar os cultos pagãos da natureza, ressuscitar as festas rústicas  e os deuses simbólicos, os evoés, as legendas, fazendo outra vez brotar anões dos rechedos, elfos das troncagens vetustas, e os nixes dos tranquilos pegos das ribeiras.Se eu tivesse uma filha, ensina-lhe ia a ouvir a missa das florestas, e a pedir a bênção às árvores, como a velhos vovôs.
E agora oiçam. Se nós rescindíssemos a escritura ao Crucificado, e outra vez repovoássemos as florestas com a troupe pagã da Grécia antiga?...

Fialho d'Almeida
http://www.youtube.com/watch?v=kR5OWN_ydIY&feature=related

terça-feira, 27 de março de 2012

Sonho do doutor Sigmund Freud


Na noite de vinte e dois de Setembro de 1939, um dia antes de morrer, o doutor Sigmund Freud, intérprete dos sonhos alheios, teve um sonho.
Sonhou que se tornara Dora e atravessava Viena bombardeada. A cidade estava destruída, e das ruínas dos palácios levantava-se pó e fumo.
Como é possível que esta cidade tenha sido destruída?, perguntava-se o doutor Freud, e tentava segurar o seio, que era postiço. Mas naquele momento cruzou-se, na Rathausstrasse, com Frau Marta, que se aproximava com a Neue Frei Presse mesmo à sua frente.
Oh, querida Dora, disse Frau Marta, acabei agora mesmo de ler que o doutor Freud regressou a Viena vindo de Paris e vive mesmo aqui, no número sete da Rathausstrasse, talvez lhe fizesse bem consultá-lo. E dizendo isto, afastou com o pé o cadáver de um soldado.
O doutor Freud sentiu uma grande vergonha, e baixou o véu. Não percebo porquê, disse timidamente.
Porque você tem muitos problemas, querida Dora, disse Frau Marta, você tem muitos problemas como todos nós, precisa de se abrir com alguém e, acredite no que lhe digo, não há ninguém melhor do que o doutor Freud para as confidências, ele percebe tudo das mulheres, às vezes parece verdadeiramente uma mulher, de tanto que se mete na pele delas.
O doutor Freud despediu-se com gentileza mas apressadamente e retomou o seu caminho(...)
Avançou pela Rathausstrasse e chegou à frente da sua casa. A sua casa, a sua bonita casa, já não existia, fora destruída por um obus. Mas no jardinzinho, que sobrevivia intacto, estava o seu divã. E em cima do divã estava deitado um labrego de tamancos e camisa de fora, que ressonava.
O doutor Freud aproximou-se dele e acordou-o. O que é que está a fazer aqui?, perguntou-lhe.
O labrego fixou-o com os olhos esbugalhados. Procuro o doutor Freud, disse.
O doutor Freud sou eu, disse o doutor Freud.
Não me faça rir, senhora, disse o labrego.
Muito bem, disse o doutor Freud, vou confessar-lhe uma coisa, hoje decidi assumir o aspecto de uma doente minha, é por isso que estou assim vestido, sou Dora.
Dora, disse o labrego, mas eu amo-te. E dizendo isto abraçou-o. O doutor Freud sentiu um grande desfalecimento e deixou-se cair no divã. E naquele momento acordou. Era a sua última noite, mas ele não sabia.

Antonio Tabucchi
http://www.youtube.com/watch?v=dViZ3KouVDQ&feature=related

segunda-feira, 19 de março de 2012

Os Maias


- E o pequeno, onde está o pequeno? - exclamou Afonso.
Pedro pareceu recordar-se:
- Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.
O velho correu, logo; e daí a pouco aparecia, erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adorável bochecha fresca e cor-de-rosa. Todo ele ria, grulhando, agitando o seu guizo de prata. A ama não passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxazinha na mão.
Afonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e acomodou o neto ao colo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bela luz de ternura; parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha doméstica; agora só havia ali aquela facezinha tenra, que se lhe babava nos braços...
- Como se chama ele?
- Carlos Eduardo -murmurou a ama.
- Carlos Eduardo, hem?
Ficou a olhá-lo muito tempo, como procurando nele os sinais da sua raça: depois tomou-lhe na sua as duas mãozinhas vermelhas que não largavam o guizo, e muito grave, como se a criança o percebesse, disse-lhe:
- Olha bem para mim. Eu sou o avô. É preciso amar o avô!
E àquela forte voz, o pequeno, com efeito, abriu os seus lindos olhos para ele, sérios de repente, muito fixos, sem medo das barbas grisalhas: depois rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu a mãozinha, e martelou-lhe furiosamente a cabeça com o guizo.
Toda a face do velho sorria àquela viçosa alegria; apertou-o ao seu largo peito muito tempo, pôs-lhe na face um beijo longo, consolado, enternecido, o seu primeiro beijo de avô; depois, com todo o cuidado, foi colocá-lo nos braços da ama.

Eça de Queiroz
http://www.youtube.com/watch?v=iNntUHDc6U0