sábado, 13 de maio de 2017

Creio nos anjos...

                   

                    Creio nos anjos que andam pelo mundo,
                    Creio na Deusa com olhos de diamantes,
                    Creio em amores lunares com piano ao fundo,
                    Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

                    Creio num engenho que falta mais fecundo
                    De harmonizar as partes dissonantes,
                    Creio que tudo é eterno num segundo,
                    Creio num céu futuro que houve dantes,

                    Creio nos deuses de um astral mais puro,
                    Na flor humilde que se encosta ao muro,
                    Creio na carne que enfeitiça o além,

                    Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
                    Na ocupação do mundo pelas rosas,
                    Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

                    Natália Correia
                    (caricatura de Vasco)
                   https://www.youtube.com/watch?v=8xhHxr2t4Ts

domingo, 7 de maio de 2017

Terras do Demo - Junho


Inácio Relvas Maturranga de Mioma gozava a tarde de Junho à sombra da latada que cobria de frescura o pátio antigo e o tanque, em que se vinham lançar águas de mina, deixando ao despedir do boeiro um soluço sem fim. Uma galinha dava aula aos pintainhos, mesmo debaixo de seus pés, e suspendeu a leitura de Comédia Ulyssipo a observar-lhes a manobra, trajados ainda do pêlo do demo, nas rémiges um pó de arco-íris, gárrulos e inocentes como os diabinhos dos velhos autos. A chieira que erguiam, ao prear mosca ou cibato perdido, quebrava o silêncio do lugar, fechado ao mundo, e aberto em toda a frente dele, ao horizonte infinito. Pinhais taciturnos, baldios de fieito e de sargaço eram levados na envolta efusiva do verde; e céu azul, terra em festa, os animaizinhos do Senhor cantavam. Cantavam. Cantavam todos nos seus jardins de serradela, ou à boca dos agulheiros, o grilo, o ralo, a cigarra vadia; na mata que, às horas do poente, estendia sua sombra pelos mortos, a rola e a poupa arrulhavam; e ali nas cerejas do quintal, que já tinham bichos, o passaredo moinante parecia uma aula de meninos mal criados. A Primavera despedia discretamente, sem avisar, vinha aí o Verão, um senhor Verão de chapéu de palha e cara pintada das amoras e das uvas. Aves e insectos celebravam a vinda estrondosa do grande rabaceiro, que lhes trazia fêmea, um silo, e farândolas de mosquitinhos loucos para encher o papo.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Terras do Demo - Páscoa


Homem de seiscentos diabos aquele senhor padre Francisco, tão escoteiro nas suas obrigações de pároco como, pelos montes, a bater as lebres! Bofe, no domingo de Páscoa, tinha alma de tirar o folar em Peva, abadia de três povoações com passante de trezentos fogos, pôr-se em Aris ainda muito a horas para a segunda missa e a visita ritual aos fregueses. Além da sua égua ruça papa-léguas, a engrolar o latim era ele subir ao altar e, mal um cristão se precata, vê-lo de braços abertos ite missa est. Atabalhoado, sim senhor, não obstante é preciso rasgo até a alinhavar.
Aris toda se enfeitara de véspera e de manhãzinha para a cerimónia, ruas varridas para as quintãs, colchas às janelas, raparigas, bem trajadas, aos ranchos pelos soalheiros à espera da aleluia.
Recebia-se a visita pascal na casa de fora, armada com a melhor lençaria, lençóis bordados, colchas de algodão em xadrez, mantas antigas de chita com papagaios de oiro, cortiços de abelhas, rosas-do-japão cor de carne, a encher um fundo, lavrado como leira, a branco e azul de mar. Sobre a arca, atoalhada do mais puro linho, apresentava-se o folar, rimas de queijos e bolos, pratos de ovos, ou moedas entaladas em laranjas, à falta destas, pêros; nas casas lautas uma pichorra com vinho, rabo de porco ou orelheira para o arrebenta-diabos; e acima de todo este preparo, o Cristo da família, defumado da fuligem e mordido do tempo, com uma flor de arraial por detrás da nuca, abençoava.
A romaria corria veloz; à frente o campainheiro, badalando como vaca-toira, após, o Torres com a cruz, no couce o padre e seus beleguins. O Torres destampava o Santo Cristo. Tinham-lhe posto uma grande camélia acima da coroa  e parecia banhado em sangue e esparrinhar à roda ondas de sangue. A família, de joelhos, colava os lábios nos pés puídos pelos beijos de séculos:
- Aleluia! Aleluia!
O Sr. padre Francisco pegava no hissope e aspergia as cabeças sorridentes, a casa, o folar, os papagaios bisnaus no pano azul-marinho:
- Boas festas! Boas Festas! Aleluia!
Despedia de roldão como tinha entrado, e era aquele o momento mais solene do obséquio; se o senhor abade não fazia o gesto de "deixa lá", os guantes do Brás varriam para o cesto do Javardo o que sobre a toalha se mostrasse.
O dia de Páscoa era uma malhada para os padres. Enchiam as queijeiras e chegavam a criar-lhes mofo nas arcas os pães-de-ló e os bolos de trigo folhado. Os ovos que ajuntavam enfartariam um convento de gulosas freiras com seus capelães durante um trintário. 

domingo, 16 de abril de 2017

Oração

                       

                       Pai Nosso pequenino
                            Tem a chave de Deus Menino
                            Quem lhe deu quem lhe daria
                            São Pedro Santa Maria
                            Cruz em fonte cruz em monte
                            O pecado não me encontre
                            Nem de noite nem de dia
                            Nem ao pino do meio-dia
                            Já os galos pretos cantam
                            Já os anjos se levantam
                            Já o Senhor subiu à cruz
                            Para sempre. Amen, Jesus. 
                           
                         Narradora: Celisa Canário (Olhão) 
                           (pintura de Josefa de Óbidos)
                           https://www.youtube.com/watch?v=go1-BoDD7CI

domingo, 9 de abril de 2017

À chegada dos dias grandes

                       

                         Da luva lentamente aliviada
                         a minha mão procura a primavera
                         Nas pétalas não poisa já geada
                         e o dia é já maior do que ontem era

                         Não temo mesmo aquilo que temera
                         se antes viesse: chuva ou trovoada
                         É este o deus que o meu peito venera
                         Sinto-me ser eu que não era nada

                         A primavera é o meu país
                         saio à rua sento-me no chão
                         e abro os braços e deito raiz

                         e dá flores até a minha mão
                         Sei que foi isto que sem querer quis
                         e reconheço a minha condição

                         Ruy Belo
                         (pintura de Pissarro)
                         https://www.youtube.com/watch?v=zisrTiEhSYU

domingo, 2 de abril de 2017

Persianas


Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,


cercado de hábitos
e de conteúdos que nada e que tanto
predizem

cascalho que o íntimo da casa
importa para o malquerido usufruto
porcelanas que reluzem a cada almoço
aquém e além persianas

coisas
que multiplicam até ao sufoco
e pior que coisas a qualidade que têm
que lhes pomos

escrevo nomeando tudo
e tudo transcende o nome que tem
tudo alarga de inominável
brilho

E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua alcatroada


o mesmo alvor mas filtrado têm
os matizes domiciliados as translucidezes
de que me sirvo para inteirar
o esqueleto confuso destes versos

triste — e clemente — quem neles pousa
agora o olhar.»


Miguel-Manso
(pintura de Modigliani)
https://www.youtube.com/watch?v=VbaXVooEuWE

domingo, 26 de março de 2017

O Quinto Império


Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz —
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa — os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

Fernando Pessoa
(pintura de Júlio Pomar)
https://www.youtube.com/watch?v=KS37iml3-Qw