domingo, 23 de janeiro de 2011

Avé Aveiro


A mais antiga memória que guardo de ti é da ria a transbordar por praças e vielas, nas marés vivas. Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges) às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da avó. Casa escura, com mofo a rato, olhares do José Estêvão no louceiro antigo, um opúsculo do Marques Gomes a dizer-me que um tio de antanho fora decapitado pelo D. Miguel...
Cá fora, os teus ares lavados e tranquilos, escalas tocadas ao piano dos suplícios prendados, uma passagem por baixo do andor de Santa Clara para cortar o freio da língua, luta pelas cavacas de S. Gonçalinho, musicatas nos coretos - e pouco mais...
Vamos crescendo, os dois, já sem laranjas roubadas na Rua do Gravito e sem aventuras nocturnas pelos arrabaldes - e descubro a beleza com que te despedes (despes) do Sol, perco-me em versos pelos carreiros das marinhas, levo a pasta da namorada à Estação, invento um jornalzinho de estudantes... Aprendo a respeitar professores como João Joaquim Pires, José Pereira Tavares, Francisco de Assis Maia, George Agostinho da Silva, António Salgado Júnior, guardo um profundo desprezo por outros, peço dez tostões à minha mãe para comprar O Diabo, lanço uma cervantina burricada pelo teu centro, compenso o José Estêvão ensinando-lhe (junto às grades da estátua) o canto em coro da Internacional - conspiro adolescentemente...

Mário Sacramento
http://www.youtube.com/watch?v=0A19S1gGnrM&feature=related

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