sexta-feira, 10 de novembro de 2023

A Sentinela Francesa

Oh! Maldita guerra!
Como entrei em Lisboa e me achei na minha casa, realmente não sei. Sim, lembro-me de passar no Rossio, e vê-lo cheio de uma multidão horrível - toda a população dos arredores refugiando-se, na fuga aterrada diante do inimigo. Era um caos de carros, de gado, de mobílias, de mulheres, gritando; uma massa brutal e apavorada, redemoinhando sobre si mesma, clamando por pão, sob a chuva implacável.
Dias amargos! Todos os meus cabelos encaneceram.
E pensar que durante anos nos podíamos ter preparado! E pensar que, à maneira de Inglaterra, podíamos ter criado corpos de voluntários (...)
Mas de que vale agora pensar no que se poderia ter feito! O nosso grande mal foi o abatimento, a inércia em que tinham caído as almas! Houve ainda algum tempo em que se atribuiu todo o mal ao Governo! Acusação grotesca que ninguém hoje ousaria repetir.
Os Governos! Poderiam ter criado, é certo, mais artilharia, mais ambulâncias; mas o que eles não podiam criar era uma alma enérgica ao País! Tínhamos caído numa indiferença, num cepticismo imbecil, num desdém de toda a ideia, numa repugnância de todo o esforço, numa anulação de toda a vontade... Estávamos caquéticos! O Governo, a Constituição, a própria Carta, dera-nos tudo o que nos podia dar: uma liberdade ampla. Era ao abrigo dessa liberdade que a Pátria, a massa dos Portugueses tinha o dever de tornar o seu País próspero, vivo, forte, digno da independência (..)
Por mim todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os meus joelhos e mostro-lhes a SENTINELA! Mostro-lha, passeando devagar, de guarita a guarita, na sombra que faz o edifício ao cálido sol de Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro...
Conto-lhes então os detalhes da invasão, as desgraças, os episódios temerosos, os capítulos sanguinolentos da sinistra história... Depois aponto-lhes o futuro - e faço-lhes  desejar ardentemente o dia em que, desta casa que habitam, desta janela, vejam sobre a terra de Portugal, passear outra vez uma sentinela portuguesa!

Eça de Queiroz


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