quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Memórias das guerras contra a França



A guerra, ganha uma vez, podia ganhar-se novamente agora, disse Januário. Ele, Duarte Augusto, já a ganhara vinte sete anos antes, naquela mesma Casa. Com astúcia, imaginação e audácia, ponderando tudo a seu tempo:
Começara pelas janelas, em que mandara pôr grades de ferro, e pelas portas e portões, reforçados por trancas e barrotes. Vieram a seguir as munições, que lhe custaram noites de vigília a preparar, porque se tinham esgotado, léguas em volta, os cartuchos, a pólvora e as buchas. Para os primeiros, remediava-se com o material da caça, mas teve de improvisar as buchas.
Rematados assim com buchas caseiras, dera a cada um dez cartuchos, e reservara trinta para si próprio. O bastante para uma primeira arremetida. As restantes munições ficariam escondidas, a salvo de um saque que era preciso também considerar possível.
Posto isto, diversificou os lugares onde guardava as moedas, enterrando boa parte dentro de panelas, nos canteiros, com precaução.
Seguiu-se a reserva dos mantimentos, na adega e no sótão.
Depois de tudo pronto, despediram-se da Vila, meteram-se na carruagem e fingiram ir-se embora: Encheram o carro de malas e caixotes vazios e lá se acomodaram com puderam, ao cair da tarde, o Picoto chicoteando os cavalos, os cães seguindo em baixo, trotando entre as rodas, como nos carros de ciganos. Mas logo deixaram os cães, os cavalos e o carro noutra propriedade e voltaram a pé, no meio da noite, e passaram vários dias com as janelas fechadas, à luz de velas.
E assim tinham escapado de todo o perigo, disse Duarte Augusto, assim ele salvara toda a família como Moisés no deserto, como um capitão de mar  alto o seu navio -
Ai que mentira, riu a Maria Badala, disse Benta. O velho Duarte Augusto conta tudo a seu modo, mas não foi nada assim:
Nessa altura o velho era novo e fechou-nos em casa com medo dos franceses, nós e uma cabra, que ficava na adega, para dar leite às meninas.
Era tudo um desespero, só se cozinhava quando havia vento, para não se ver o fumo subir da chaminé, e água também não havia, era preciso ir buscá-la à fonte, e só de noite, pouca de cada vez e às escondidas (...)

Teolinda Gersão (texto com supressões)
Fotos do Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, Porto


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