segunda-feira, 15 de julho de 2024

Actualidade do Zé Povinho

João Abel Manta

O fecho definitivo dos portões do Império africano, o regresso a Ítaca de tantos milhares de lusos dispersos em diaspórica presença pelo globo terráqueo, e até a nossa entrada na CEE e a nossa ulterior caminhada dentro dessa União Européia, bem como a nossa aparente diluição na identidade mais vasta dessa grande e ambiciosa comunidade de destinos e de sonhos não anularam o significado deste totem doméstico. De modo que lá anda ele, neste Portugal re-europeizado, num país de serviços, onde a União Européia paga aos nossos camponeses para se absterem de amanhar a terra, sempre apto a representar-nos, como nos tempos do seu pai Rafael, desmentindo os nossos alegados avanços ou progressos que o tornariam caduco e arcaico – na realidade, somos agora inconvictamente “europeus”, como outrora tínhamos sido “liberais” de acordo com a Carta outorgada e, mais tarde ainda, tínhamos fingido que éramos “republicanos”, vegetando, em seguida, durante quase meio século, manietados e amordaçados em Ditadura pura e dura, para nos acharmos, reconquistada a liberdade, fantasiados de “revolucionários” e “socialistas” (...) e agora, tendo passado do esmagador sector primário para um crescente e hoje omnipotente  sector terciário, nos sentimos nulos e vácuos e nesta “orla vã da praia” ocidental (Fernando Pessoa). Aí vai um número: 62,8 % da população activa no sector dos serviços, contra 4,1 % no primário, segundo o censo de 2001. Contudo, esta viragem histórica não lançou o Zé no desemprego simbólico, de modo que vamos continuar a ter no Zé Povinho, quer isso nos agrade ou não, o nosso melhor ( e único) verdadeiro auto-retrato como povo – aliás, povinho, já que nunca logrou ser, como prognosticara erradamente Ramalho Ortigão, “simplesmente povo”. Em suma, mesmo modernizado, europeizado, alfabetizado e terciarizado, livre do naufragado Império no qual, como o neurasténico Velho do Restelo dos Lusíadas, nunca acreditou, antes tomou sempre como fonte de infindáveis desastres e misérias -, o Zé persiste em assegurar o papel de estereótipo nacional, porquanto, na sua essência anímica, nas veras da sua alma mais íntima, nas suas entranhas mais ônticas e no seu recorte psicológico mais fundo, perene e arcaizante, ele continua a representar a mesma inércia, a mesma comunidade nacional sofredora, apática, descrente, nihilista e, só ocasionalmente, capaz de raríssimas explosões de cólera, sempre esporádicas e inconsequentes, expressas através de um gesto fálico brutal, próprio,

aliás, de quem não sabe falar, pois nunca se alfabetizou moral, cívica ou escolarmente o suficiente para encarregar gente mais dotada da palavra para exprimir as suas cóleras, justos queixumes ou legítimas aspirações. 

João Medina (texto com supressões)



"Manguito" de Carlos de Oliveira "apareceu" em frente do Palácio de Belém, em 3/4/2023. O Sr. Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa,  autorizou que ficasse instalado no interior do Palácio, no jardim dos Teixos, enquanto decorre o processo  relativo à sua localização definitiva.



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