segunda-feira, 15 de julho de 2024

Zé Povinho

Eis em resumo a instrutiva história de portento tão admirável e prodigioso:
Zé Povinho começava apenas a ter-se nas pernas, quando os poderes seus pais, pondo-o à porta das instituições na franca direcção do olho da rua, lhe fizeram este memorável discurso:
"Zezinho vai passear. 
Nós, teus pais, depois de havermos cogitado com diurna e nocturna aplicação resolvemos de comum acordo que o melhor dote que se te podia dar era a liberdade, pois que a liberdade é, como bem dizem os filósofos, o maior dos bens, superior ao próprio ouro.
Sê pois livre, e capacita-te de que vais muito mais bem convidado com a licença que para isso te conferimos do que com três ou quatro pintos que te metêssemos no bolso!
Escola não a tens, porque te poderia fazer mal o puxar muito pela cabeça nos estudos, e lá diz o ditado que antes burro vivo, como tu estás, do que doutor morto, como tão frequentemente se tem visto.
Tenhas tu a graça de Deus Nosso Senhor, que é o que se pretende! e essa divina graça, lá está o reverendo pároco da tua freguesia encarregado da ta dar, se lhe pagares a côngrua.
Para manter o teu direito e defender a tua justiça encontrarás também os tribunais competentes, com advogados idóneos para discursarem a teu respeito pela gratificação de seis moedas, vestindo-te a túnica alva e luminosa da inocência ou amarrando-te à perna a grilheta do forçado, segundo sejas tu que dês as seis moedas, ou seja a parte contrária que as dê.
Enquanto ao governo incumbido de assegurar a manutenção de toda esta caranguejola, tão engenhosamente concebida para tua satisfação e recreio, serás tu mesmo que por tua mão o elegerás, metendo escrito no papel o nome daquele que destinares para poder executivo... Para o fim de te dar o papel com o nome do sujeito que hás-de meter e que nós nos encarregamos de confeccionar, lá estará um funcionário especial intitulado o Regedor.
Para continuares a gozar o sumo bem da liberdade que te outorgamos, tu não tens senão o pequeno incómodo de pagar tudo o que isto custa, e de dar os vivas do estilo, sempre que a ocasião se ofereça, ao príncipe, à real família e às instituições que vivem à tua custa.
Finalmente sempre que precisares do que quer seja, trata de o ganhar, porque ninguém te dá nada! Adeus, Zezinho, vai-te com Nossa Senhora!"
Crescido, Zé Povinho correspondeu perfeitamente às esperanças que nele depositaram os solícitos poderes do reino. Como desenvolvimentos de cabeça ele está pouco mais ou menos como se o tivessem desmamado ontem.
Um dia virá talvez em que ele mude de figura e mude também de nome para, em vez  de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo.

Ramalho Ortigão,  do "Álbum de Costumes Portugueses", 1888 
(texto com supressões)





Foi no jornal A Lanterna Mágica, a 12 de junho de 1875, que Rafael Bordalo Pinheiro  apresentou pela primeira vez a figura icónica do Zé Povinho, daí em diante e até à atualidade entendida como símbolo do povo português.
Este desenho apresenta uma metáfora à tradicional cena lisboeta do peditório para o Santo António. Assim, Fontes Pereira de Melo (Chefe do Governo Regenerador) está feito Santo António segurando ao colo o menino Jesus que é o rei D. Luís. À esquerda o Comandante da Guarda Municipal, de chicote, observa a cena.
O Zé Povinho (identificado através de inscrição, nas calças), de roupas esfarrapadas, é abordado por Serpa Pimentel, então Ministro da Fazenda, de quadro de ardósia ao ombro e prato de esmolas na mão, que lhe pede uma moeda para o “santo”. Pairando sobre a cena, figuras com corpo de abelha, de cartola, representam personalidades da política nacional.

Fonte: Museu Rafael Bordalo Pinheiro



Nenhum comentário:

Postar um comentário