segunda-feira, 28 de maio de 2018

Eu, o tempo e a Ana Hatherly


Era uma vez um relógio anacrónico. Quando batia as horas estas rolavam pela sala e depois transformavam-se em lindas maçãs de prata que se penduravam do tecto. De cada vez que uma hora nova rolava pela sala as outras já de prata sorriam pendentes do tecto de modo que naquela sala havia sempre uma espécie de som de riso de prata e quando o relógio dava uma volta completa no quadrante as horas já de prata deixavam-se cair e então o som era mesmo de grandes gargalhadas de prata.

Ana Hatherly
(desenho HN)

segunda-feira, 21 de maio de 2018

A elegia mística do Buçaco















O sol de meio Agosto já ia perto do declínio final. E do alto, desde os degraus da grande Cruz, erguida a prumo sobre a planície, varanda atlântica do Ocidente, via-se em baixo a Beira Litoral, limitada a Norte pelas serranias do Caramulo e da Estrela, desdobradas em toda a sua majestade; em frente, sobre a esquerda, alvejava, mais que os outros povoados, em nítido relevo, a estria longitudinal de Coimbra; e, no fundo, ladeado pelo negro esporão do Cabo Mondego, refulgia, ferido pelo Sol, o Oceano.
Por detrás duma dobra do relevo coimbrão sumiam-se as terras ásperas onde fui nado e as mais amenas dos campos do Mondego, onde me criei. A meus pés desdobrava-se o teatro da minha adolescência; do fundo do vale via subir, como uma névoa, os meus primeiros sonhos. Da minha lira, há muito bissexta, ergueu-se um cântico íntimo de saudade. Depois, vibrando como as velhas cordas, baixei por entre adernos, carvalhas, medronheiros, loureiros e giestas gigantescas, restos da primitiva floresta lusitânica, a aspérrima Via-Sacra, que se afunda na selva, acrescida e replantada pelos frades. Ungi-me de novo do velho espírito do Buçaco, cuja mata sagrada celebra e entoa em cada recanto, de frondes, musgo e sombra, a elegia mística da paixão de Cristo.
Mais uma vez compenetrei-me de que é impossível apreender o sentimento essencial desse lugar único em serra portuguesa, sem refluir às suas origens no primeiro quartel do século de Seiscentos. Muitos dos melhores portugueses, ofendidos pelo domínio opressivo dos Filipes, abalavam para o Brasil, alguns para a Índia e a África e muitos para o Peru. Mas outros, como os carmelitas do Buçaco, refugiaram-se naquilo a que chamaram o deserto, o deserto da floresta, cercada e segredada do mundo, com ermidas e rudíssimas vivendas embebidas na rocha; votaram-se à vida solitária e silenciosa do eremitério frondoso; e deram-se por missão plantar árvores, proteger e amar as árvores e renovar a selva primitiva com algumas espécias sagradas como o cedro.

Jaime Cortesão
https://www.youtube.com/watch?v=O6LpPSUjt5I

terça-feira, 8 de maio de 2018

Experiência no papel


 “QUE COISA SÃO AS NUVENS?”

Enquadramento teórico

·         Lei de Lavoisier ou lei da conservação da massa: “Na Natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma”.

·         Importância da samplagem na Arte Contemporânea. Samplear é um conceito que tem origem na música e consiste em ( Vide Dicionário Priberam)“gravar e modificar sons através de um sampleador”. No texto de apresentação da exposição Pictures and Cream (2015) na Galeria Cristina Guerra Comtemporary Art“ lê-se: “Os criadores produzem uma constante releitura do caos desta cultura global, anulando distinções entre criação e cópia, ready-made e trabalho original. As noções de criação e originalidade esbatem-se nesta contínua “samplagem” da paisagem cultural. Manipulando formas e formatos pré-estabelecidos, os artistas contemporâneos servem-se delas para descodificar modelos e produzir outras correntes de realidade, ou seja, narrativas alternativas. As narrativas contemporâneas são permanentemente fragmentadas e descentradas, o presente retrata-se numa dimensão anti-narrativa, herdeira de Warhol, Debord ou Godard.”

·         Sabedoria popular: “Do velho se faz novo”. Era o lema dos nossos avós, por necessidade, sem preocupações artísticas. Será muito exagerado considerar que, no actual contexto de uma sociedade consumista, este princípio adquire um sentido ainda mais abrangente e inclui a própria Arte?
                                                                                

Recursos
  •     Canção “Inquietação” de José Mário Branco
  •    Uma estante com livros, CD e DVD representativos das mais variadas  manifestações de arte, nas diversas culturas ao longo dos tempos
  •     Um caixote do lixo (médio)
  •     Filme de Pasolini “Que coisa são as nuvens?”
  •     Papel cenário e marcadores
  •     Computador e vídeoprojector
  •     Um ajudante/preparador.
Descrição da experiência

O preparador começa por ligar a aparelhagem para a audição de “Inquietação” como fundo musical.
https://www.youtube.com/watch?v=D0HPZdpoo3U

Em seguida explica a um grupo de participantes como realizar a experiência devendo os vários elementos entrar em acção ao mesmo tempo, de acordo com as instruções.

      Instruções:
1.Escolher (rapidamente) 4 ou 5 exemplares das obras expostas na estante
2.Colocá-las no caixote do lixo
 Quando todos os elementos do grupo tiverem acabado estas duas tarefas, o preparador despeja o caixote ficando o seu conteúdo em monte, no chão. Retira a canção e liga a aparelhagem para dar início à projeção da cena final do filme de Pasolini “Que coisa são as nuvens?” 

(Duas personagens-marionetas são despejadas numa lixeira e vêem pela primeira vez o céu. Maravilhadas, dialogam:
- E...o que é aquilo?
- Aquelas são...as nuvens.
- E o que são estas nuvens? Como são belas! Ah! Como são belas! Como são belas!
- Dolorosa, maravilhosa, beleza da criação!)
https://vimeo.com/133697523

Por fim, o preparador convida os participantes a escreverem no papel cenário sobre a experiência que acabaram de realizar e coloca de novo a música “Inquietação”.     

HN                    

sábado, 28 de abril de 2018

Que coisa são as nuvens?

“Nunca fui tão livre com agora”
António Lobo Antunes (escritor) e José Tolentino Mendonça (padre e poeta), Moderação Sara Belo Luis,



Vê-los entrar de mão dada. Vê-los a entrarem muito devagar, como que amparados um no outro, já de olho na assembleia que os espera. Vê-los e perceber, nesse curto compasso de tempo gasto pelos dois para irem do fundo do palco até às cadeiras onde vão conversar, que António gosta de José Tolentino e José Tolentino gosta de António. Sentir o amor.
A conversa entre o escritor António Lobo Antunes e o padre e poeta José Tolentino Mendonça estava anunciada como um “grande encontro”. Não sabíamos que a próxima hora iria passar num ai, mas secretamente desejávamos que assim fosse. Chovera grande parte da manhã e, como escreveu um outro poeta, Deus parara o sol sobre Lisboa (vamos lembrarmo-nos disso quando António atirar uma citação sem aviso – “Que coisa são as nuvens?” – e José Tolentino apanhar a referência a um filme de Pasolini). Escrever que nos sentimos abençoados a ouvi-los só parece exagero a quem não teve a sorte de estar no momento certo no auditório do Capitólio – e Deus teve tudo a ver com isso.
O dia em que António conheceu José Tolentino foi o dia em que a escritora Ana Teresa Pereira (“Uma das pessoas mais docemente misteriosas que conheci”) o encontrou na Madeira e lhe ofereceu uma tradução do Cântico dos Cânticos. “O nome do tradutor nada me dizia”, confessa, “mas era um poema de uma grande qualidade, um grande poeta, uma voz extraordinária.”
Se já sentia uma imensa admiração, respeito e inveja dos poetas, aquele livro ajudou-o a aproximar-se da poesia e de Deus, com o qual sempre teve uma relação complicada e conflituosa. “Zango-me imenso com Deus”, confessa, arrancando os primeiros risos da plateia. “Não sou como Voltaire que dizia: 'Cumprimentamo-nos, mas não falamos'. Eu falo, mas de vez em quando zango-me.”
A partir daí, conta, andou constantemente à procura das obras do poeta madeirense, mas continuava sem conhecer o pessoalmente. Até que um dia, Eugénio de Andrade lhe falou nele.
“Ele recebia-me muito bem, no Porto, com vinho fino e uns bolinhos que achava de que eu gostava. Tinha uma casa muito agradável, viam-se as palmeiras e o mar… Vou dizer um poema dele, o primeiro que me vier à cabeça, para vocês verem como ele era...” [e diz “Iremos juntos separados as palavras mordidas uma a uma, taciturnas, cintilantes (…)]
Naquela tarde já longínqua, Eugénio de Andrade contou-lhe que sentia uma enorme inveja de Hermínio Monteiro, o editor da Assírio & Alvim que morrera recentemente, porque tivera a felicidade de morrer de mão dada com o José Tolentino. “Ele contou isto e os seus olhos encheram-se de lágrimas, os meus também... Temos a sorte de estar aqui com um homem excecional.”
O “homem excecional” sorri e aproveita mais uma pergunta colocada pela jornalista Sara Belo Luís (“Os leitores são os crentes da literatura?”, quer saber a moderadora astuta) para responder à declaração de amor acabada de ouvir. Se os leitores “fazem viva a literatura, dando-lhe algo que ela deseja”, se o poema “é como o riscar de um fósforo” e o verso é dado pelos deuses, António Lobo Antunes já não é apenas o escritor. “É a encarnação da sua dádiva, na sua desmesura.”
Os leitores, esses são a consolação, diz Tolentino. “A literatura ainda nos deixa nesta margem, só por causa deles é que os escritores não desistem”, acredita. “Os leitores dão-nos a ilusão (ou a verdade), com a sua convicção e amor, de atravessar o rio, de passar para lá da margem, de as palavras serem aquilo que elas sonham ser. Por isso os leitores são essenciais para a literatura. E a literatura serve para nos salvar, para nos ajudar a viver. Avançamos de mãos dadas.”
[Escreva-se, antes de assunções rápidas e erradas, que não foi por essa razão que os dois entraram de mão dada no palco. Foi num entras-tu-primeiro-não-entras-tu que acabaram por entrar assim, e afinal não podia ter sido doutro modo.]
António e José Tolentino são parecidos – e não é apenas no amor. Quando escrevem não pensam em ninguém, é uma inquietação, uma vontade de ser. E são ambos bichos. Desta vez, é o poeta quem o diz, e é como se ouvíssemos o escritor. “Não sou um homem convencionado e, nesse sentido, não se lhe pode pedir que escreva para um leitor. Escrevo para um buraco negro.”
Instado a comentar, António olha para a plateia e ri-se. “Estou aqui a pregar no deserto, mas vocês interessam-se muito mais pelo Facebook.” Reparou – como não? – que na primeira fila há vários smartphones à vista, e então dispara que tem pena de ver pessoas de dedo no telemóvel, sem nunca olharem umas para as outras, como já tinha pena dos casais calados nos restaurantes. E das pessoas que não leem, que se privam da arte.
“Não tenho telemóvel, nem computador, nem cartão de crédito. Sou livre, não tenho nada disso. Sou um moderno franciscano. Agora, nem tenho carro. Nunca fui tão livre como agora.”
Invejamos e aplaudimos. E no rescaldo dos aplausos o escritor lembra-se de mais um poema, desta vez de Carlos Oliveira, que fala dos abismos das coisas. Diz dois ou três versos e ironiza: “Isto não é melhor do que um SMS?” Mas, como está tudo ligado, volta atrás, à troca entre o escritor e os leitores. Ao amor. “Todo o escrever é um ato de amor. Um livro só está realmente escrito quando tem um leitor, nem importa que seja só um.”
José Tolentino concorda com António (“A razão que nos faz escrever é o amor”) e acrescenta-lhe um outro tema: “Escrever é uma forma de contrariar a morte, de contrariar o nada. A criação é a possibilidade de riscar um fósforo no escuro. Num romance, encontramos a nossa possibilidade, a tal mão que nos vai ajudar a caminhar num corredor vazio. É isso que a literatura nos oferece.”
Não lhe peçam é para, nesta equação, substituir a literatura por religião, ri-se o padre e poeta. Porque se a literatura nos leva para outra margem, “a religião é o salto no escuro”, nota.
É a deixa para voltar a entrar António Lobo Antunes, que logo se diz “um miraculado”. A história de uma meningite aos 8 meses que pôs o avô paterno a fazer uma promessa já é conhecida, mas o escritor pode contá-la cem vezes e é sempre uma delícia. Se o neto não morresse, esse avô, homem de grande devoção a Santo António, levá-lo-ia a fazer a primeira comunhão a Pádua. Coube ao pai, jovem médico de 25 anos, fazer a punção lombar que o tirou do coma – ou terá sido Santo António a fazer um milagre? Certo é que o pequeno António foi mesmo a Itália e prometeu, de mão na tumba do santo, que se um dia tivesse um filho dar-lhe-ia o seu nome e levá-lo-ia também ele até Pádua.
A viagem de um mês por Itália, também com os pais, teve várias peripécias: António foi atropelado por uma bicicleta na Suíça, e perdeu-se na Praça de São Marcos, em Veneza. A discussão entre o avô e um italiano seria épica e terminaria com uma afirmação finalíssima – “Santo António era de Lisboa e de Portugal” e mainada! No fim, o escritor herdaria a devoção ou pelo menos à-vontade suficiente para pedir cura para os dois cancros que veio a ter em adulto.
Agora, ouve o padre e ouvimos nós (e com um sorriso porque Lobo Antunes é um mestre a fazer-nos rir a falar de coisas sérias): “Da primeira vez, pedi-lhe imensa desculpa e curei-me. Da segunda, voltámos a falar.” Com Deus seria sempre mais difícil, confessa. Falta-lhe intimidade, quase o trata por Senhor Doutor, sente-se como o drogado que pede a moedinha. “A nossa relação é pedinchona, estou farto de pedir cigarros a Deus e a maior parte das vezes ele nem olha, claro.”

21 de Abril de 2018
Jornalista Rosa Ruella                                                                                                    

domingo, 22 de abril de 2018

Cânticos


II

                                    Não sejas o de hoje.
                                    Não suspires por ontens - . .
                                    Não queiras ser o de manhã.
                                    Faze-te sem limites no tempo.
                                    Vê a tua vida em todas as origens.
                                    Em todas as existências.
                                    Em todas as mortes.
                                    E sabe que serás assim para sempre.
                                    Não queiras marcar a tua passagem.
                                    Ela prossegue:
                                    É a passagem que se continua.
                                    É a tua eternidade. . .
                                    É a eternidade.
                                    És tu. 

                                    Cecília Meireles
                                    Pintura de Egon Schiele
                                    https://www.youtube.com/watch?v=-T_VS3oN_Uk

domingo, 15 de abril de 2018

Musa, sinceramente


Musa, sinceramente, vai chatear o Camões.
Que podem os poetas, diz-me, contra marketeers,
aguados humoristas e outros promotores
da realidade? Eu sei que não identificas real 
com verdadeiro, nem sequer com existente,
mas que valor pode ter uma metáfora sem preço,
por brilhante que seja, neste mundo de gritos,
de sementes apagadas em lameiros de cimento?
Tu não vês o telejornal, Musa? Nunca ouviste 
falar da impermeabilização dos solos na cidade
de Deus, do entupimento das artérias cerebrais?
Pensas que estás no século XIX? Mais, julgas-te
capaz de competir com traficantes de desejos,
decibéis e abraços? És capaz de fazer rir um 
desempregado, de excitar um espírito impotente?
Consegues marcar golos "geniais" como o Ricardo
Quaresma, proteger do frio as andorinhas,
transportar as crianças à escola? Se achas que sim,
faz-te à onda do mercado, Musa, e boa sorte.
Mas não contes comigo pra te levar à praia.
Sabes perfeitamente que detesto areia, sol
na testa e mariolas de calção. Vá, não me maces.
Pela parte que me toca, ficamos por aqui.

José Miguel Silva
Pintura de Marc Chagall
https://www.youtube.com/watch?v=XWJk1coNw6o

domingo, 8 de abril de 2018

Coração Polar


Ouvi dizer que há um veleiro que saiu do quadro
é ele que vem talvez na nuvem perigosa
esse veleiro desaparecido que somos nós.
Da minha janela vejo-o passar no vento sul
outras vezes sentado olhando o ângulo mágico
sinto a sua presença logarítmica
vem num verso alexandrino de Cesário Verde
traz a ferragem e a maresia
traz o teu corpo irrepetível
o teu ventre subitamente perpendicular
à recta do horizonte e dos presságios
ou simplesmente a outra margem
o enigma cintilante a florir no cedro em frente
qual é esse país pergunto eu
qual é esse país onde tudo existe e não existe
qual é esse país de onde chega este perfume
este sabor a alga e despedida
esta lágrima só de o pensar e de o sentir.
Não é apenas um lugar físico algures no mapa
é talvez o adjectivo ocidental
o verbo ocidentir
a advérbio ocidentalmente
quem sabe se o substantivo ocidentimento.
Está na palma da mão no nervo no destino
e também no teu corpo aberto ao vento do nordeste
é talvez o teu rosto alegre e triste - esse país 
que existe e não
existe

Manuel Alegre
(serigrafia de Lima de Freitas)
https://www.youtube.com/watch?v=JOpn8I1vnAg