quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Receita para fazer o azul


Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice
https://www.youtube.com/watch?v=idG1ozQcFxg

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Pores do Sol


Se eu fosse pintor passava a minha vida a pintar o pôr do sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte com um ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta. Tardes violetas, neste ar tão carregado de salitre que torna a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados...
Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do norte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas - e não quer morrer...
Esta tarde o sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas. Some-se, e ressurge por fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra numa grande nuvem espessa com interstícios de fogo e explode iluminando o espaço e a água cor de chumbo.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Montemor-o-Velho





Nossa Senhora da Expectação
O castelo vê-se de longe, abrange toda a coroa da elevação em que foi levantado e, tanto pela sua disposição no terreno como pelo número de torres quadradas e cilíndricas que lhe reforçam os muros, transmite uma poderosa impressão de máquina militar. O viajante não precisa de sonhar castelos em Espanha, tem-nos em Portugal, e este avulta entre a grande cidade deles que já lhe povoa a memória. É possível, no entanto, que o viajante, a quem o cultivo das letras não é estranho, esteja a deixar-se influenciar por factos que com o castelo nada têm, como seja terem nascido nesta boa vila de Montemor o Fernão Mendes Pinto da Peregrinação e o Jorge de Montemor da Diana. Sabe muito bem o lugar que ocupa nesta fila de três, lá para trás, no coice, mas, sendo a imaginação livre, compraz-se com a ideia de que por esta mesma porta de Santa Maria de Alcáçova entraram a baptizar-se, cada um em seu tempo, o pícaro Fernão e o amoroso Jorge e agora entra o viajante, por seu pé, com muito mais sal na boca do que à salvação convém, mas tão curioso como Fernão e tão melindroso como Jorge. Fique este desabafo e vamos às pedras e pinturas. Santa Maria de Alcáçova em três naves, mas são tão amplos os arcos, tão esbeltas as colunas, que mais parece isto um salão enfeitado de falsas sustentações. Mora aqui um retábulo renascentista presumivelmente da oficina de João Ruão, e nele, entre Santa Luzia e Santa Apolónia, uma Virgem da Expectação gótica, de Mestre Pero, que mostra o ventre fecundado, pousando nele a mão esquerda. É uma formosa imagem, que não esquece.
                                                                                                   
José Saramago
https://www.youtube.com/watch?v=8QthBRx6Cd4


                   
                                                                                                    

sábado, 12 de agosto de 2017

Como se estivesse em Agosto


Estou todo no mês de agosto
Estou escarranchado no lombo nutrido de agosto
sentado à mesa de um café envolto no manto de múltiplas vozes
olhando pela janela uma toalha de mar e a terra ao fundo
debaixo do céu azul e branco do sol e do vento
café e vozes céu terra e mar tudo coisas talvez de agosto
objectos que o deus deste mês se porventura dada a fartura
                                houver também um deus para os meses
utiliza para que assim toda a gente possa falar univocamente de agosto
e agosto não seja o nome frio dos números
mas seja um tempo e a orla da água que banha os pés desse tempo
e as coisas que existem na mão aberta desse tempo
Agosto não é o oitavo mês do ano
as férias há muito previstas e marcadas o sítio
de certos rostos por um instante resplandecentes mas cedo
                                                  bebidos pelo esquecimento
talvez para o ano vindos na vaga de um novo mês de agosto
Agosto são muitos jornais vagarosamente lidos
de páginas uma a uma passadas como os trinta e um dias deste mês
agosto é o espaço do pensamento da boca boquiaberta
do sol outra vez usado como o único relógio de pulso
Agosto é eu estar aqui a trazer as mangas arregaçadas
é envelhecer ao sol na dispersão distraída de determinados gestos
é saber que estou de momento separado de secretárias com
                                            muitos problemas em suspenso
que me sento numa pedra e oiço uma música e reconheço
               a minha forma mais frequente de me sentir vivo
embora depois complique o que sinto e diga talvez que me sinto feliz
Agosto são talvez estas palavras todas onde me perco onde
                                                  procuro pôr os meus passos
onde afinal penso que permaneço um pouco mais do que
                                                  no frágil edifício dos dias
Estou um pouco nestas palavras na própria
palavra agosto que ponho sobre o papel
e que embora aponte para agosto não é esse mês de agosto
Estou em agosto estou um pouco em agosto

Ruy Belo
https://www.youtube.com/watch?v=5ddn4urVSZ8

domingo, 30 de julho de 2017

Mar


O verão já vai alto e eu ainda não dei um mergulho.
O estio é época de dura faina para quem vive do palco e o meu síndroma-de-sereia-seca está taco a taco com um valente défice de vitamina D.
Preciso de água como as plantas, só que salgada. Quando passo perto do mar o vejo a entrar pela janela do carro, sinto uma espécie de sede, que não é de beber, mas de mergulhar. Todos os anos se repete a privação e todos os anos prometo a mim mesma um (utópico) verão na areia, só para ver se é possível fartar-me dele, e não fazer mais nada que não ler, dormir e flutuar.
Flutuar é aliás um dos prazeres da vida mais menosprezados e uma das artes mais intuitivas (porém delicadas) que podemos praticar. Para mim sempre foi fácil. É só estender o corpo na água como uma cama infinita, e senti-lo derreter para depois levitar, numa espécie de lençol fluído que nos embala docemente. Deve ser o mais perto de estar numa placenta, mas com todo um céu para contemplar. E em vez de ouvirmos um coração de mãe, ouvimos a conversa dos búzios, ou o nosso próprio murmurar, que a água nos devolve com uma canção de ninar engarrafada.
Sempre vivi perto do mar. Cresci a 500 metros do Atlântico, onde também cresceu António Nobre. Da janela virada para o porto de Leixões, gostava de ver a ponte móvel e a entrada dos navios, com o seu uivo, sempre grave. De ver o rebuliço dos guindastes, descarregando troncos, carros, cereais. De ver as gaivotas invadir o recreio da escola em dia de tempestade. De voltar da praia sem sandálias. De mexer no sargaço regurgitado pelas ondas. De ver o brilho madrepérola dos grãos de areia incrustados na pele, como pedras preciosas em marfim. E de sentir o cheiro do mar permanentemente. Como uma confirmação de proximidade. Sobretudo no inverno, quando está tão bravo que cospe tudo o que não quer e a nortada nos fere os tímpanos com suas agulhas.
Acho que uma boa parte da minha identidade portuguesa está depositada nessa dependência. Nessa certeza de que viver sem mar é como morar numa casa sem janelas.

Capicua
(pintura de Alfredo Roque Gameiro)
https://www.youtube.com/watch?v=FOCucJw7iT8&t=592s

domingo, 23 de julho de 2017

Marcha fúnebre de Siegfried - Wagner

Na tarde que de névoas se escurece
escuto a marcha que ao herói transporta
fúnebre e doce, tão violenta e fluida,
à sua pira em que arderá cadáver
a cinzas reduzido. Erguem-se os metais
nos ares entreabertos, terra se contrai
onde tambores reboam, e as madeiras
e cordas acompanham o cortejo
descendo para o rio que perpassa
igual sempre a si mesmo de outras águas
como os heróis que morrem tão humanos.
E é o que nos diz este mostrar por música:
os semi-deuses morrem como nós,
como nós sofrem mágoas de derrota,
e como nós desejam, amam, gozam
ou raivam da tristeza de não ter.
Mas nós não possuímos quanto a eles cabe,
neste fervor de imaginá-los, quem
nos cante o fim de tudo o que foi grande,
o que foi puro, o que de consentido
foi gesto dedicado sem usura
ao simples existir além de nós
na terra que nas trevas se nos fecha.
Não temos isto mais do que em só música,
mas os deuses também não, que aos heróis mortos
nunca sobrevivem.

Jorge de Sena
(Poster de Ingrid Rosell)
https://www.youtube.com/watch?v=XPmldLR3bJw

domingo, 16 de julho de 2017

As coisas simples

                   

                          (Sobre pinturas de Nuno de San Payo)

                          Gosto das coisas sólidas. Sem brilho.
                          Coisas de linho ou de pedra
                          desmesuradamente agarradas ao chão.

                          Gosto das coisas brancas
                          lavadas pelo ar fresco da manhã
                          e varridas pela memória recente
                          da espuma, do sal ou da gaivota.

                          Coisas simples e serenas:
                          o pão quente e farto, o café tomado em família,
                          as meninas chilreando sobre a relva
                          ao sol da primavera.

                          Gosto da música suave que,
                          quase sem de si nos dar presença,
                          se desprende levemente
                          de uma flor irrepetível.

                          Gosto dos pequenos gestos,
                          os simples, tranquilos e altivos gestos.

                          Gosto de saber que essa altivez
                          transporta um incêndio discreto,
                          um canto de alaúde, um perfume de alfazema.

                          Gosto das coisas simples, sólidas serenas:
                          um momento de obscura comoção, um resto de luz
                          a estender-se na mesa,
                          a folha de jornal já lido que se desprende e vai
                          na desmedida ambição
                          de se tornar borboleta.

                          José Fanha
                          (pintura de Nuno de San Payo)
                          https://www.youtube.com/watch?v=EMi3aTRLdoU